A morte é a única certeza que temos. Todo mundo está entre a vida e a morte o tempo todo. Não é verdade que só corre risco de vida quem está internado em uma UTI. Qualquer ser-vivo, do recém nascido ao ancião que beira o centenário, do mais saudável ao paciente terminal de um câncer, está diariamente vivendo na iminência de morrer.
Quando eu era criança, o medo da morte me apavorava constantemente. Eu tinha medo de morrer. Tinha medo de algum vizinho meu morrer. Eu acreditava, naquele tempo, em almas penadas, em espíritos que voltavam do mundo dos mortos para perturbar as pessoas vivas. Lembro de um enterro de um parente. Eu era muito novo. A imagem de um caixão azul sendo perfurado (os caixões dos pobres antigamente eram feitos com alguns pedaços de madeira e cobertos de plástico, por isso era necessário no sepultamento furar a tampa, para que a terra pudesse fazer o seu trabalho) e das pessoas jogando terra voltava sempre a minha mente. Eu tinha horror a tudo isso. Como se não bastasse, muita gente gostava de contar casos de pessoas enterradas vivas. Meu medo aumentava. Eu tinha pesadelos sendo enterrado vivo.
Um amigo de infância morreu. Brincávamos muito. Éramos vizinhos. Não tive coragem de ir vê-lo no caixão. Lembro da insistência de minha mãe para que eu fosse me despedir. Mas não tive coragem. Um momento, eu estava ao lado da casa, vendo a multidão de pessoas que se aglutinavam para o enterro, e mãe me pegou pelo braço e me levou, contra a minha vontade, até o esquife. Saí chorando de lá. Essa lembrança é bastante vívida. Talvez seja por isso que, até hoje, não costumo ir para velórios de pessoas que morrem na aurora de suas vidas.
Com um tempo comecei a gostar de enterros (Mas outro dia eu conto sobre esse lobby macabro que cultivei no fim da minha infância e início da minha adolescência). Mas o medo de morrer, de ser enterrado vivo, de ir para o inferno era constante em mim. Tive hepatite do tipo A. Lembro de ficar, durante meu período de doente, perguntando a minha mãe seu eu iria morrer. Graças a Deus isso, ainda, não aconteceu.
O medo da morte me aproximou dos evangélicos pentecostais. O discurso deles de que quem aceitava Jesus ia para o céu me dava um alívio. Meu medo da morte era, em grande medida, o medo do inferno. O discurso de um Deus irado, sempre pronto pra castigar os erros das pessoas e mandá-las para o inferno foi presente, durante muito tempo, em minha vida. Hoje não acredito em muita coisa que povoou minha mentalidade infantil e adolescente. Mas os evangélicos davam uma certeza enorme da entrada no paraíso celeste das pessoas que morriam convertidas. Elas seriam salvam. Eu queria ser salvo.
Terminei indo para a Assembléia de Deus ainda criança. Só que eu era pagão, ou seja, não batizado na Igreja Católica. Eu estudava o catecismo para fazer a Primeira Comunhão e iria aproveitar a ocasião para me batizar. Só a partir daí, segundo minha mãe, eu poderia virar crente. Só me converti no final de 1999 na Igreja Universal do Reino de Deus. Por incrível que pareça, nessa minha primeira fase evangélica e depois na Igreja do Betel Brasileiro, meu medo da morte sumiu.
Mesmo tendo rompido com a ideologia protestante, não tenho mais medo de morrer. Tenho medo da forma de morrer. O tipo de morte que terei me assusta. Será que vai ser demorada? Acidente automobilístico? Assassinato? Infarto? Alguma doença rara? Isso me assusta. Mas não fico atemorizado diante da vida pós-morte. Sou tranqüilo a esse respeito. A propósito, o eterno Raul e o bem vivo Paulo Coelho no “Canto para a minha morte”, falam
Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas... Um acidente de carro.
O coração que se recusa abater no próximo minuto,
A anestesia mal aplicada,
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio...
Mas escrevi tudo isso porque essa semana terminei de ler “O Diário de um Mago”, de Paulo Coelho. Como muita gente sabe, o autor de “O Alquimista” é o meu escritor dileto. O livro descreve a sua experiência pelo caminho de Santiago de Compostela. Ele foi como peregrino católico e como membro de uma Tradição bastante ligada à magia. Assim, durante o Caminho, várias experiências foram feitas, com a orientação de seu guia, Petrus, e uma delas está relacionada à experiência de ser enterrado vivo. Meu maior medo infantil.
Algumas palavras do seu guia me deixaram bastante reflexivo e passei a ter uma visão mais positiva dos seres humanos. Vamos lá.
“O homem é o único ser na natureza que tem consciência de que vai morrer. Por isto, e apenas por isto, tenho profundo respeito pela raça humana, e acredito que seu futuro será muito melhor do que seu presente. Mesmo sabendo que seus dias estão contados e tudo irá se acabar quando menos espera, ele faz da vida humana luta digna de um ser eterno. O que as pessoas chamam de vaidade – deixar obras, filhos, fazer com que seu nome não seja esquecido – eu considero a máxima expressão da dignidade humana.”
Nem preciso comentar, né? Está tão claro. Esse trecho prendeu de imediato a minha atenção. Reli várias vezes. Mas tem outro parágrafo que continua a sua linha de pensamento.
“Acontece que criatura frágil, ele sempre tenta ocultar de si mesmo a grande certeza da Morte. Não vê que ela é que o motiva a fazer as melhores coisas de sua vida. Tem medo do passo no escuro, do grande terror do desconhecido, e sua única maneira de vencer este medo é esquecer que seus dias estão contados. Não percebe que, com a consciência da Morte, seria capaz de ousar nas suas conquistas diárias – porque não tem nada a perder, já que a Morte é inevitável.”
A partir desse trecho eu percebi o quanto a consciência da morte é um estímulo para viver a vida. E viver bem! Com dignidade. Com paixão. Com disse o poeta “viver e não ter a vergonha de ser feliz”.
Assim sendo, a consciência da morte impele ou deveria impelir as pessoas a ousar mais, serem menos temerosas de errar, de levar um fora, de perder... Essa madrugada, em conversa com um amigo pelo MSN, eu me lembrei da música “Epitáfio” dos Titãs. Sempre imagino, quando a escuto, um homem diante de sua lápide vendo o filme da sua vida e percebendo o quanto ela deveria ter sido mais prazerosa, mais alegre se ele tivesse amado mais, chorado mais, ter visto o sol nascer, ter arriscado mais, ter feito o que ele queria fazer...
A parte que mais gosto em “Epitáfio” é quando ele diz que deveria ter se importado menos com problemas pequenos e ter morrido de amor. Eu fico pensado: “será que esse cara amou algumas vezes e nunca ousou ir adiante com seus sentimentos com medo de não ser correspondido?”. Ah, companheiro, espero chegar aos meus dias finais, fazer uma reflexão sobre a minha existência e dizer: “Vivi a vida intensamente, combati o bom combate, lutei pelos meus ideais, amei, fui atrás de meus sonhos e os que não realizei não foi por falta de tentativas, nem tudo eu pude realizar, mas pelo menos eu tentei.”
Portanto, diante da efemeridade da existência as pessoas deveriam correr atrás da realização de seus desejos. Chegará um dia que isso não será mais possível. É melhor se arrepender do que fez do que se arrepender do que não se fez. Para terminar essas minhas elucubrações, faço uso das palavras de Petrus em mais uma trecho de “O Diário de um Mago”: “A morte é nossa grande companheira, porque é ela que dá o verdadeiro sentido às nossas vidas.”