sexta-feira, 19 de abril de 2019

“Não é Não” e o Feminismo Nosso que Falta no Dia a Dia


            O carnaval de 2019 contou com uma forte campanha contra o assédio sexual. A campanha “Não é Não” veio para conscientizar as/os foliões sobre a necessidade de um comportamento lúdico que respeitasse os limites da individualidade da outra pessoa, sobretudo das mulheres, em consonância com a Lei 13.718 de 24 de setembro de 2018 que tornou crime a importunação sexual. Ademais, a maior festa popular brasileira coincidiu na mesma semana do Dia Internacional da Mulher.

            Em vários blocos carnavalescos de João Pessoa foi possível ver homens e mulheres com adesivos do “Não é Não”. A campanha, assim como a lei que criminaliza a importunação sexual, chegou a ser bastante criticada por muitos homens, inclusive do jornalismo paraibano. Durante um dos programas radiofônicos do meio-dia, um dos apresentadores disse, na semana anterior à festa, que a folia ia ficar sem graça. “Como vou curtir o carnaval sem poder beijar uma mulher? Tenho que pedir um beijo por obséquio? ”. No raciocínio do radialista, a mulher deveria, portanto, um objeto de sua vontade.

            O machismo e o sexismo estão enraizados na cultura patriarcal brasileira, que coloca o pai/homem como centro de poder e chefe dos desejos femininos. Desde o período colonial, a mulher era vista tão somente como objeto de desejo dos homens, sujeitos sem direitos e com muitos deveres, sobretudo os sexuais e os domésticos. Chegamos quase no final da segunda década do século XXI e vemos não apenas falas públicas de profissionais de imprensa, mas também mortes, agressões de todos os tipos, e uma imensa desigualdade econômica e política em razão do gênero.

            O atual presidente da república foi eleito com um discurso machista declarado. Todos lembram da frase proferida a uma deputada federal sobre não a estuprar porque ela não merecia; existem, no pensamento do chefe da nação, mulheres que merecem ser estupradas. No seu governo formado por 22 ministérios, tem-se apenas duas mulheres. No dia 08 de março ele declarou, em solenidade oficial alusiva ao Dia Internacional da Mulher, que as duas mulheres valeriam pelos vinte homens.

            A ministra da mulher, família e direitos humanos disse que o governo ia ensinar os meninos a darem flores para as meninas e a abrir a porta dos carros, numa direção totalmente contrária do que as mulheres buscavam discutir no dia. No Twitter, a hashtag #TrocoFloresPor era um dos assuntos mais comentados. Flores representam a consolidação do discurso machista que coloca a mulher como sexo frágil.

            As críticas do “Não é Não”, as falas do presidente da república e da ministra da mulher, família e direitos humanos deixa claro a necessidade premente de educar meninos e meninas, adolescentes e jovens, homens e mulheres adultas sobre a igualdade de gênero, em outras palavras, uma educação feminista.

            Tive recentemente a oportunidade de ler o opúsculo “Sejamos Todos Feministas” da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, uma versão adaptada de uma palestra sua em 2012. De forma simples e didática, ela relata casos de sua vida que a levaram a torna-se feminista e como o machismo e a misoginia estão impregnados na cultura nigeriana. Muita gente justifica a desigualdade entre homens e mulheres com base na cultura. Segundo a escritora: “A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não fazem parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura.”

            Mudança cultural de mentalidades e práticas é feita, sobretudo, por meio da educação. E educação formal porque em muitas famílias (na maioria) os fundamentos machistas são dogmas. A escola precisa adotar em seus currículos conteúdos que ensinem desde cedo que a igualdade é um valor importante para as crianças. Ensinar sobre gênero, ao contrário do que pensam os integrantes do atual do governo federal, sobretudo o chefe, não é ensinar a fazer sexo, mas a pensar que um mundo igual entre meninos e meninas é mais que possível, é necessário. Ensinar que brinquedos são iguais e não devem ser separados por gênero, que trabalho doméstico é dever de todos que moram no lar.

            Feminismo não interessa apenas as mulheres. É bom lembrar que o sexismo e o machismo afeta diretamente todos os homens que não adotam o padrão de masculinidade dominante. A homofobia está aí para comprovar que não apenas homens gays são agredidos ou mortos; existem vários casos de heterossexuais que sofreram por, em um dado instante, apresentar comportamento que “não era de homem.”

            Finalizo com um trecho lindo do livro de Chimamanda que é um convite a todos e todas nós: “A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente.”

domingo, 24 de março de 2019

A Volta do Boêmio no Busão




Eu tinha saída da casa do crush em Manaíra. Fui pra Epitácio pegar um busão para a rodoviária. Precisava ir para Alagoinha. Peguei um livro e comecei a ler enquanto esperava o coletivo e continuei a leitura mesmo após ter entrado no transporte.

Quando o ônibus chega na parada da lagoa, como sempre, muita gente desce e muita gente sobe indo em direção ao terminal de integração do Varadouro. Mas dessa vez entrou um senhor, certamente com mais de 70 anos, deu boa tarde aos demais passageiros, sentou e começou a cantar.

De repente paro a leitura assim que sua voz grave começa a entoar “A volta do Boêmio” de Nelson Gonçalves. Guardo o livro e fico, mentalmente, cantando “Boêmia / Aqui me tens de regresso / E suplicante te peço / A minha nova inscrição”. Que beleza! Quando ele ia iniciar o trecho seguinte, um outro senhor, sentado um pouco atrás de mim, canta “Voltei pra rever os amigos que um dia / Eu deixei a chorar de alegria / Me acompanha o meu violão”.

Parecia algo combinado. Os dois vão cantando enquanto o ônibus segue seu destino, passando por baixo do viaduto e entrando no Varadouro. E canto também, como falei acima, mentalmente; não queria atrapalhar aquele dueto belíssimo que rompia com o ordinário das viagens cotidianas no transporte coletivo de João Pessoa.

Quando chegamos no terminal de integração, enquanto todos começam a descer do ônibus, eu vou me demorando propositadamente para falar com o senhor que iniciou a canção do velho Nelson. Parece que ele adivinhou meu intento e me diz: “Ontem eu tava cantando no ônibus e uma mulher evangélica disse que eu estava endemoniado”. Minha resposta: “o demônio estava nela por não reconhecer a beleza poética e o dom divino em canções como ‘a volta do boêmio’”. Ele ri e sigo meu destino.

Compro minha passagem pra minha terra natal e viajo feliz.

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